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Celebrações
oficiais dos "500 anos" ocultam genocídio sobre
o qual foi erigido o país
(3/10/1999)
O encobrimento
do Brasil
JOSÉ MURILO DE CARVALHO
Em
1992, por ocasião dos 500 anos da viagem de Colombo, houve
intenso e extenso debate nas Américas e na Europa sobre o
vocabulário adequado para descrever a chegada dos europeus
ao continente. Uma crítica devastadora foi então feita
ao uso da palavra "descobrimento", ou "descoberta",
por representar um insuportável etnocentrismo europeu. De
fato, só foi descobrimento para os europeus. Aqui viviam,
em 1492, cerca de 50 milhões de habitantes, não muito
menos que a população da Europa. A Cidade do México,
capital do império asteca, tinha 200 mil habitantes, mais
talvez do que qualquer cidade européia. Paris tinha na época
cerca de 150 mil.
Falar em "descobrimento", argumentou-se, implicava dizer
que essas gentes e civilizações só tinham passado
a ter existência real após a chegada dos europeus.
Implicava ainda dar um tom falsamente neutro a um processo que foi
violento e genocida. Os 5 milhões de nativos da Hispaníola,
aonde chegou Colombo, desapareceram em um século. Os 25 milhões
do planalto mexicano foram reduzidos a 2 milhões no mesmo
período. Nos Andes, 10 milhões tinham virado 1,5 milhão
ao final do século 16. Um inegável genocídio,
já denunciado na época por Las Casas em seu famoso
libelo "A Destruição das Índias Ocidentais".
Sete anos depois, o Brasil entra na febre dos seus 500 anos. No
entanto, nas celebrações oficiais e oficiosas, nas
reportagens da mídia, nas exposições, nos seminários
acadêmicos, a terminologia empregada para descrever a chegada
dos portugueses a nossas praias é uma só. Com uma
ou outra exceção, em geral vinda de algum chato inconveniente,
celebra-se o descobrimento do Brasil. Os (poucos) que leram a carta
de Caminha exibem erudição usando o equivalente arcaico
"achamento". A quase unanimidade vocabular deixa perplexos
observadores de outros países. Perguntam-se se os brasileiros
não tomaram conhecimento do debate de 1992.
Se tomamos, ou não lhe demos importância, ou achamos
que ele não nos dizia respeito, ou as duas coisas -a primeira
por causa da segunda. Segundo a última hipótese, para
os brasileiros os problemas relacionados à palavra descobrimento
só existiriam no caso da América espanhola. A acusação
de eurocentrismo é descartada, talvez por desprezo pelo menor
número e menor complexidade social de nossos nativos.
O genocídio que a palavra encobre seria também fenômeno
exclusivamente espanhol, fruto da truculência dos conquistadores.
Em nosso caso, as relações dos portugueses com os
nativos teriam sido amigáveis. Nada melhor para exprimir
esta visão do que a consagração da carta de
Caminha como certidão de nascimento do país. A carta
só foi publicada em 1817, mas tem a grande vantagem de apresentar
imagem quase idílica do encontro entre portugueses e nativos.
Ela permite generalizar essa imagem para toda a história
das relações entre os dois povos.
Imenso encobrimento. A população nativa da parte portuguesa
era sem dúvida muito menor do que a da parte espanhola. Mesmo
assim, ela foi calculada entre 3 e 5 milhões à época
da chegada de Cabral. Digamos 4 milhões. Isso equivalia a
quatro vezes a população de Portugal. O bandeirante
Raposo Tavares diz ter visto em 1653, ao longo das margens do rio
Madeira, aldeia de 150 mil almas, maior do que o Rio de Janeiro
de 1822. Apesar do menor número, o genocídio não
foi menor em termos relativos. Às vésperas da Independência,
o número de indígenas foi calculado por Veloso de
Oliveira em 800 mil, numa população total de 4,4 milhões.
Ao final de três séculos, a população
da colônia portuguesa era quase a mesma de 1500, com a diferença
de que tinham desaparecido 3 milhões de nativos, média
de 1 milhão por século.
A documentação sobre a mortandade é abundante
para os que não escolhem limitar-se à carta de Caminha.
Como na parte espanhola, a devastação se deveu à
violência e às doenças trazidas pelos invasores:
varíola, sarampo, gripe, peste. Não tivemos um Las
Casas para denunciar o crime, mas os depoimentos de Anchieta, Nóbrega,
Cardim, Vieira e outros não deixam margem a dúvida.
Alguns exemplos. Anchieta fala da morte por doença, em 1562,
de 30 mil índios em um período de dois ou três
meses. A violência e a escravidão, segundo o mesmo
jesuíta, dizimaram em alguns anos 80 mil índios das
missões da Bahia. O padre espantava-se com a rapidez com
que "gastava gente", era coisa "em que não
se pode crer". Simão da Silveira conta que 500 mil tupinambás
foram dizimados no século 17 graças aos esforços
do capitão Bento Maciel Parente, que se aliara a tribos rivais,
copiando a tática de Cortés no México.
A marca portuguesa talvez esteja no fato de que o próprio
Anchieta tenha escrito um panegírico a Mem de Sá,
o exterminador de índios. A principal tarefa do terceiro
governador-geral foi fazer guerra aos donos da terra, estivessem
ou não aliados aos franceses. Exterminou os caetés
como castigo por terem ousado moquear e comer o bispo Sardinha.
Vangloriava-se de ter destruído todas as aldeias tupiniquins
em Ilhéus e de ter enfileirado uma légua de cadáveres
deles na praia. O extermínio dos tamoios, aliados dos franceses,
foi cantado por Anchieta em "De Gestis Mendi de Saa",
em versos que lembram a crueza, embora não a qualidade, dos
de Homero. Segundo o "Apóstolo do Brasil", a melhor
pregação para aquela gente bárbara era "espada
e vara de ferro".
Foi este o Las Casas que nos coube. A ambiguidade diante da violência
foi também presente em Vieira, que condenava a escravidão
dos índios, mas aceitava a dos africanos. Nenhuma ambiguidade,
agora já entre brasileiros, está presente na exaltação
dos bandeirantes como símbolo do orgulho paulista. Durante
ataque aos guaranis das missões jesuíticas, esses
predadores e escravizadores de índios e exterminadores de
quilombos "provavam o aço de seus alfanjes em rachar
os meninos em duas partes, abrir-lhes as cabeças e despedaçar-lhes
os membros", na descrição de Capistrano de Abreu.
O mesmo empreendimento colonizador que dizimou em três séculos
3 milhões de nativos foi também responsável
pela importação, nos mesmos três séculos,
de 3 milhões de escravos africanos, cuja sorte não
foi melhor.
Se as palavras não são para encobrir as coisas, só
há uma expressão para descrever o que se passou desde
1500: conquista com genocídio dos índios, seguida
de colonização com escravidão africana. Daí
viemos, em cima disso foram construídos os alicerces de nossa
sociedade. Descobrir o Brasil hoje é tirar o véu que
o "descobrimento" lança sobre este lado inescapável
de nossa herança. Algum chato poderá mesmo perguntar
por que não se aproveita o ímpeto celebratório
para uma ação de impacto em benefício dos que
pagaram a conta desses 500 anos.
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